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sábado, julho 19, 2003

A intermitência XIV 



foi como uma doença, vinham-te as palavras à boca e tu não fazias senão abrir a
boca; e comeste, e baniste e fodeste, e magoaste e amaste e fodes, faltou-te o jejum.


Na mesa a lutar com o latim.



Tacere nescit idem qui nesci loquoi,
quem não sabe falar, não sabe calar-se,
não aceito vozes.


"Cristiana Veiga Simão", in Âmbar Sépia Café

sexta-feira, julho 18, 2003

A intermitência I 



eu sentava-me à tua mesa e sem te dar tempo di
zia: estou assim, a amar-te sem poder senti-lo.
A dizer-to. É uma intermitência do coração da mi
nha vida, ou é talvez para sempre, bem como se
passam as coisas. Mas se estivesse a sentir a mi
nha paixão, decerto não ta diria, aproveito agora
esta distância inabitada que me invade para
expulsar a angústia. Amo-te e não o sinto. É
apenas um vazio que me invade para expulsar a
angústia. Amo-te e não o sinto. É apenas um vazio,
mais que a paixão, sem sentimento, de falta, de
angústia, de desejo.


"Cristiana Veiga Simão", in Âmbar Sépia Café


... 



Leve espuma de um deus
excitadíssimo. Única coisa que
se enrola como um fruto ao ar
que o envelhece. Utensílio branco
da espessura do tempo, ausente
de si mesmo. Metal da loucura
e da compreensão: água talhada
na madeira, fogo na cintura
dos olhos. O tempo move os
beijos; a boca gosta das
palavras: ave que aquece
suas plumas.


"Joaquim Pessoa", in Por Outras Palavras


IV 



(...)

E o teu corpo estremece, desperta para uma interminável madrugada,
onde não há palavras,
onde não são precisas palavras,
e uma intensa alegria tem o sabor dos teus beijos
quando os nossos lábios acendem uma fogueira de rosas
que ilumina a solidão pela noite fora.

E tudo me perturba. De tudo me esqueço
quando nos tocamos, assim, até ao fundo.

(...)


"Joaquim Pessoa"

quinta-feira, julho 17, 2003

Fazer Estrelas 



Fazer amor como
quem faz estrelas
pari-las
vê-las
surgir em explosões
orgásticas
fantásticas
beleza plástica
de pernas entrelaçadas
peles entremeadas
ungidas
pêlos, sêmen,
suores bênçãos
soluços cálidos
sussurros tímidos
urgentes.
Passear a língua no
corpo
como alpinista
montes, depressões
escalas, o pico
o ápice
o pênis pulsa
tórrido
mármore
a língua feito artista
a desenhar sóis
nos mamilos
pernas abertas
frondosas árvores
sulcos
suculentos frutos
saliva
filetes
falsetes das vozes
roucas.


"Nalú Nogueira", 1a. Antologia de Poemas Eróticos


Sombras 



Uma noite como a de hoje
par'além dos lentos movimentos
dos corpos nas sombras
clandestinas
nada existe ao redor
e as imagens que te trazem a mim
só o coração do sexo a palpitar
na noite inchada de humidade
me levam a ti

eu te amo meu amor...

"João-Maria Nabais", Memórias de amor e sedução


Um grito 



Quem quiser
veja e sinta
a luz que irradia de um sorriso
o que mais vivo
e capta este aroma
de ternura
o amor
palavra redonda
maior
quanto
um grito de alma

e se ninguém mais
perturbar o olhar
amo sílaba a sílaba
o silêncio e a calma
deste meu estar

"João-Maria Nabais", Memórias de amor e sedução


Sensorial 



Esta loucura vertical e nua
descendo para o mar
como noite a que falta a escuridão
afogada no mar
suspeitei-a no ritmo das florestas
aonde nunca entrei
e sonhei-a nas cores navegadas
do poente
Desprendi os meus olhos sobre o mar
e rocei os cabelos no horizonte
tacteei a distância com o corpo
estirado no azul côncavo e fresco
molhei os pés na água amanhecida
e recolhi os olhos inundados


"Gastão Cruz", Cadernos do Meio-Dia


Murmúrios do mar 



«Paga-me um café e conto-te
a minha vida»

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu não, tu nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
e temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

«Pago-te um café se me contares
o teu amor»


"José Tolentino de Mendonça", in A que distância deixaste o coração

Não posso adiar o amor 



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.


António Ramos Rosa

A meu favor 



A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio, algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.


Alexandre O' Neill

quarta-feira, julho 16, 2003

Fosses tu deus 



Fosses tu deus, seria eu santo
alimentado a areia e gafanhotos,
sem cessar meditando o único nome
que o horizonte deserto não contém.
Sonho que acordo dentro do meu sonho
para o saber nmais certo e real;
como o místico leio nas entranhas
da audiência a tua sombra desenhada.
E no entanto és gente, sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes,
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
cada instante o que perco e não vem mais.


"António Franco Alexandre", in Duende

Fica dentro de mim 



Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho o rasto
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fugidio.


"António Franco Alexandre", in Duende

Meu duende real 



Meu duende real, que não és meu,
meu chão silencioso e verdadeiro,
por ti tenho sentido não ser mais
o vago sonho humano que antes fui.
Por um gesto que fiz ou que não fiz,
pela palavra errada que gritei
ou pelo verso tosco que escrevi,
logo o rigor de infernos me persegue;
noites desertas, onde os astros passam
na redoma calada dos espaços
e traçam uma falsa astrologia;
ferozes dentes nus, que despedaçam
as imagens doiradas que antes quis;
restos de luz, restos de sombras, nada...


"António Franco Alexandre", in Duende

Nos segredos de um e de outro 



XI
Não há nenhuma consolação no silêncio, não repitas
os enganos nem os esquecimentos. Precisamos dessa
companhia a que chamamos amor, o que liga
o coração a uma voz intensa, na

paisagem assim encontrada, na abundância de sinais.


"Francisco José viegas", in metade da vida

Ama-me 


...

Ama-me ou escreve-me, estende-me sobre as folhas
de pauta, sobre a mesa, isso se traduz em pouco,
em acetatos o azul do céu, as páginas que nos agasalham.

...


"Francisco José viegas", in metade da vida

. 



(...)

sabe que um olhar ali é como um beijo.
Mas ele ama uma ilha, avista-a
cada noite ao adormecer, sonha com ela muito,
seus fatigados membros cedem
uma dor forte quando apaga os olhos.

(...)


"Francisco Brines", in Ensaio de uma Derspedida

O Estranho Habitual 



(...)

Reflete: terá amado a vida?
Supôs amar o instante e só amou sua carne solitária,
ou amou talvez a carne que o amou.
Por certo tudo fora desejo insatisfeito,
e sua esperança foi apenas nostalgia
do que viria depois;
assim foi o futuro como lembrança:
um fantasma de luz; e o outro sombra.

(...)


"Francisco Brines", in Ensaio de uma Derspedida

terça-feira, julho 15, 2003

«O Livro das Ignorãnças»  



Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que humedece primeiro.

Etc.

etc.

etc.

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.


"Manoel de Barros"


Como será estar contente? 



Como será estar contente?
Lançar os olhos em volta,
moderado e complacente,
e tratar com toda a gente
sem tristeza nem revolta?
Sentir-se um homem feliz,
satisfeito com o que sente,
com o que pensa e com o que diz?
Como será estar contente?

Deve haver qualquer mecânica,
qualquer retesada mola
que se solta e desenrola
no próprio instante preciso,
para que um homem de carne,
de olhos pregados no rosto,
possa olhar e rir com gosto
sem estranhar o som do riso.

Na minha tosca engrenagem,
de ferrugenta sucata,
há qualquer mola de lata
que não se distende bem,
qualquer descorada glândula
ou nervo que não se enfeixa,
qualquer coisa que não deixa
deflagrar essa girândola
de timbres que o riso tem.

Não ter riso e não ter casa,
nem dinheiro nem saúde,
não se conta por virtude
que a miséria é ferro em brasa.

Mas ter casa, ter dinheiro,
ter saúde e não ter riso,
flagelar-se o dia inteiro
como se o sangrar primeiro
fosse um tormento preciso,
tê-lo sempre forte e vivo,
espantado a todo o momento,
isso sim, será motivo
de grande contentamento.


"António Gedeão, in O Carrossel do Sonho"


SONHO ORIENTAL 



Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha...

O aroma da magnólia e da baunilha
Paira no ar diáfano e dormente...
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com umas finas ondas de escumilha
E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto num cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,

Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descansas debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.

"Antero de Quental"

Faz-me o favor...  



Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.


"Mário Cesariny"


À espera da noite  



Gasto-me à espera da noite
impraticável

fiel
sugo os lábios da noite

invariável caio
nos poços da noite

Gasto-me à espera da noite alheia
amassada de gargalhadas doces e areia

Amor anoitecido vem
tecer-me um vestido
nocturno

Atraiçoo os anúncios luminosos
até a lua nova sabe a ausente
- e eu anavalhei-te com naifas de ansiedade -

Estou à espera da noite contigo
venham as pontes ruindo sobre os barcos
venham em rodas de sol
os montes os túneis e deus

Estou à espera da noite contigo
livre de amor e ódio
livre
sem o cordão umbilical da morte
livre da morte

estou
à espera
da noite


"Luiza Neto Jorge"

Sísifo 



Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo
Acordado,
O logro aventura.
És homem, não te esqueças!
Sá é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.


"Miguel Torga"

Poema 



Quero escrever-te um poema que
tenha um sentido claro como o
que os teus olhos me disseram.

Poderia ser um poema de amor,
tão breve com o instante em
que me deixaste ver os teus olhos.

Mas o que os olhos dizem não cabe
num poema,nem eu sei como se diz
o amor que só os olhos conhecem.


"Nuno Júdice"


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